Deitado nas areias do mar de Andaman tentava conectar o porquê de estar ali. Havia me esquecido em que século me encontrava. Qual reencarnação? Espaço e tempo eram uma coisa só. Pura impermanência. Músculos, nervos, meridianos de energia, chackras e tendões encontravam-se profundamente inseridos na mais absoluta meditação. Alongamentos que me levavam para outra galáxia. Satori sem fronteiras.
Recebia uma autêntica massagem tailandesa na praia mais hedonista da estonteante ilha de Phuket no sul da Tailândia. Meu corpo, espírito, nervos, tendões, resgatavam sua harmonia depois de uma desgastante viagem tendo como itinerário São Paulo, Amsterdã, Bangkok e finalmente a baía de Patong em Phuket.
O mal estar do clássico jet-leg se dissipava a medida em que a eficiente massagista barbarizava com seus dedos, cotovelos e pés em meu pobre e triturado aparelho. Estava literalmente mergulhando em um êxtase para-nirvânico. O doce vento à beira mar junto com o vai e vem dos passarinhos restauravam e me preparavam para uma aventura e experiência de um festival religioso onde milhares de pessoas participariam do maior transe coletivo já visto e degustado pelos meus sentidos.
O Festival Vegetariano de Puhket…
O festival começou aproximadamente há mais de 160 anos no distrito de Kathu e é celebrado pela minoria étnica chinesa e seus descendentes nascidos na ilha. Todos os anos no período do nono mês do calendário lunar chinês (entre setembro e outubro) durante nove dias as ruas centrais de Puhket realizam-se procissões de fiéis e devotos que celebram os antigos rituais do festival dos Nove Deuses do Imperador que mescla: a religião Taoísta e elementos budistas.
Segundo o relato do sacerdote do templo de Jui Tui um grupo de ópera da China (160 anos atrás) apresentava-se em uma tour pela ilha e por coincidência maléfica uma epidemia de malária espalhou-se na comunidade chinesa matando uma grande parcela da população. Como ninguém possuía uma fórmula ou medicina para bloquear a epidemia foram mandados quatro mensageiros para a China, com a tarefa de, consultar os oráculos e curandeiros ancestrais dos Nove Deuses do Imperador.
Quando retornaram uma série de obrigações e rituais foram inseridos nas tradições dos locais e milagrosamente a mortandade terminou. A partir de então perpetuou a tradição em respeito aos deuses e espíritos que durante os nove dias da celebração os devotos ficariam proibidos de comer carne, isto é, só se alimentam de vegetais, não praticam sexo, não brigam e os inimigos cessam temporariamente suas disputas. O que realmente
impressiona são o transe coletivo e os piercings inusitados e alucinantes que são
colocados em suas faces e bochechas.
Rito de passagem
A organização do festival juntamente com a TAT (Tourism Authority of Thailand) distribuem pelas ruas centrais de Phuket um folheto informativo explicando detalhadamente todo o funcionamento das atividades dos templos e os horários das procissões, além dos melhores locais para ver “in loco” tudo aquilo que você nunca viu em sua vida.
Espalhados pela cidade existem de seis a oito templos principais. Seguindo as informações dos especialistas resolvemos nos dirigir ao Kathu Shrine e acompanhar o início das oferendas e as iniciações dos participantes.
Chegamos às 4 horas da madrugada, uma multidão de pessoas aguardavam na porta de entrada do santuário. Milhares de velas, lanternas chinesas, iluminavam a fachada do enigmático templo. Precisamente às 5 horas da manhã os trabalhos de incorporação iniciaram. Que alucinação. Jovens, adultos, mulheres e guerreiros recebendo os pazes dos sacerdotes e se lançavam de um lado para outro, sendo possuídos pelos deuses e espíritos sagrados. No interior do santuário paredes de incensos, frutas, amuletos e comida fazem parte das oferendas. O calor humano e o delírio do transe coletivo levavam os médiuns a um estado de perda absoluta do equilíbrio.
A multidão delirava e balbuciava palavras incompreensíveis e desconexas. Nunca havia presenciado uma celebração desta magnitude. No pátio do Kathu Shrine o turbilhão de devotos incorporados balançavam suas cabeças compulsivamente e babavam e cuspiam por todos os lados. Na parte central alguns médicos, enfermeiros e assistentes começavam o ritual macabro de furar as faces e bochechas dos médiuns. A perfuração ia sendo feita com um prego de aço gigantesco e cabuloso. Eu estava em pânico diante de toda aquela atrocidade, porém era um rito de passagem.
À medida que um adepto era furado, imediatamente os familiares e voluntários enfiavam os objetos mais estranhos pela bochecha. Espadas, lanças, barras de ferro, abajures, guidões de motocicletas e bicicletas, penas de pavão, galhos de coqueiro, bambus , rifles e jarros decoravam a fachada dos médiuns taoístas. Aquilo tudo era só o começo e eu já me encontrava tendo convulsões com toda aquela barbárie. O que mais me impressionava era que os participantes não demonstravam a mínima dor. Estavam literalmente incorporados pelas entidades.
Seguindo a procissão
A procissão iniciava-se com bandeiras, tambores e fogos de artifício. Nos outros templos o mesmo ritual se processava. Acompanhava lado a lado os médiuns, fotografando e filmando, como um Michelangelo Antonioni o espetáculo do além. Dezenas de homens arrastavam suas pernas como desvairados recém saídos do hospício. Os mais macabros e insanos cortavam e furavam suas línguas com serrotes, lâminas, giletes e outros objetos
dilacerantes. Algumas horas depois, os peregrinos de todos os templos se juntavam pelas ruas principais da cidade, em impecáveis evoluções.
Cansado e destruído escapei para o hotel para me banhar e descansar daquela experiência impressionante. Nos dias seguintes fui me acostumando como qualquer ser humano que se adapta as intempéries da vida. No estádio central da cidade centenas de pessoas atravessam tapetes de carvão em brasa na maior tranquilidade. No apertado templo de Niau uma escada de mais de 10 metros e com degraus de lâminas afiadíssimas era o cenário onde dezenas de guerreiros subiam e desciam descalços o martírio, ao final não apresentam nenhum corte em seus pés. Estranho. Sexta feira treze. Pavoroso. Socorro.
Conseguia registrar os melhores ângulos do ritual demencial. Todos os dias ao final das procissões, próximo aos templos os objetos , abajures , espadas e machados eram retirados e os médiuns voltavam ao normal como num passe de mágica. Riam, conversavam, comiam e não sentiam a mínima dor depois de terem carregado a parafernália durante horas rasgando suas bochechas. Fiquei amigo de muitos guerreiros.
Mr Ong que durante a caminhada havia levado em sua face dois machados opulentos, comentava: “Este é meu oitavo ano em que participo do festival. Sempre recebi e incorporei a divindade T’ien chu que tem o nome secreto de Tzu chung e seu elemento é o metal. Depois de duas semanas as cicatrizes desaparecem da minha face. Cumpri honestamente e com muita fé minhas obrigações com o meu guardião e protetor. Meu corpo e espírito estão novamente abençoados e afastei as negatividades. Graças a Lao Tze, a saúde e boa fortuna renasceram na minha família”.
A complexidade dos rituais e a alegria e bem estar dos participantes me deixavam absorto diante de tanta felicidade. Tinha feito diversas amizades. Perambulava por todos os templos na maior desenvoltura e carregava os palanquins e liteiras com as estátuas das divindades, juntamente com os assistentes. Os mais jovens se auto-imolavam e lançavam as clássicas bombas e fogos de artificio chineses pela multidão e na entrada dos edifícios governamentais.
Pelo ruas na porta de todas as residências, milhares de altares recheados de frutas, flores e comida eram oferecidas aos deuses e transeuntes. Para a maioria dos ocidentais que pela primeira vez observam o que acontece nas ruas de Phuket se assemelha a um ritual satânico e histérico.
Para os locais é a mais autêntica purificação e conexão com seus deuses. O ritual de auto-mutilação coletiva é para esta comunidade uma grande festa e celebração similar ao carnaval no Brasil, Qoylluriti nos Andes, Kumbha-Mela na Índia e outros festivais religiosos.
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