Mar de romeiros muda a paisagem do sertão em devoção a Padre Cícero

Não existe casta, posição social, prepotência, celebridade, ego ou alguma coisinha postiça. Apenas uma massa humana caminhando em direção a escultura de Padim Ciço.

Os fogos de artifício ricocheteiam por todos os ângulos no Vale do Cariri. Raios de sol rasgam como espadas flamejantes as montanhas e nuvens ao amanhecer. A experiência é fascinante. Caravanas de romeiros de todos os cantos do Nordeste brasileiro deslizam e sobem a ribanceira para agradecer uma graça alcançada, fazer um pedido de misericórdia, um milagre, clamar pela esperança da cura e por dias melhores. O cenário é messiânico. Meus olhos e sentidos registram as entranhas da fé desse povo sofrido e guerreiro. Percebo o que é imperceptível nas grandes cidades e nas telas da TV e do cinema. No ar, o cheiro da pólvora mistura-se com o do café, milho cozido, vela, tapioca e suor. Sou arrastado além do mundo artificial da superfície temporal. O coração transborda de felicidade e respeito. E, sobretudo, desligo minha mente que maquina rótulos e julgamentos preconcebidos – quero compartilhar e vivenciar a experiência coletiva.

O epicentro da peregrinação, foco da gigantesca corrente de devotos, é a imponente estátua de Cícero Romão Batista, carinhosamente batizado pelos fiéis de Padim Ciço, o Padre Cícero. Na subida da escadaria, o caminhar dos romeiros é tranquilo e sossegado. Escancaro meus ouvidos e acompanho, como um gravador sensitivo, a conversa de uma família. “Vai subindo, Luizinho. Oh meu Deus Todo Poderoso, perdi voinha. Bora, bora, bora Felliciano que tia Murcinha tá arrodeando a estátua de painho. Olhe voinha, Jiló, tá embaixo da bengala do painho pagando suas promessas. Eita, gota-serena”. Os familiares percebem minha atenção na conversa e lançam sorrisos de confraternização e cumplicidade. Minha sensação é a de uma laranja dentro de uma caixa enorme. Não existe casta, posição social, prepotência, celebridade, ego ou alguma coisinha postiça; apenas faço parte daquela massa humana caminhando em direção a arrodear a esculturona de Padim Ciço. Faço meus pedidos pessoais em uma folha de papel e coloco no emaranhado de fitas que envolvem a estátua. A paisagem do sertão absorve o burburinho das músicas apocalípticas e o vai e vem dos paus de araras e ônibus que lotam o estacionamento.

QUEREMOS UM SANTO
Centenas de documentários, biografias, filmes e reportagens já foram realizados contando a história dos romeiros e a vida de Padim Ciço. Mas sempre vale lembrar… Cícero Romão Batista nasceu em 24 de março de 1844, na cidade de Crato, sul do Ceará. Conhecido como padre, o herói cearense não teve uma relação muito fofa com a Igreja Católica.

Os problemas começaram no ano da graça de 1889 (meu cansado hard-disk mental me sopra que esse parece ter sido também o ano da Proclamação da República). Uma beata chamada Maria de Araújo acabara de receber uma hóstia das mãos do padre quando sua boca começou a jorrar sangue – é, a jorrar sangue. Esse fenômeno teria se repetido diversas vezes. Enigmas, mistérios, messianismo, profetas, fanatismo desvairado; a Igreja não gostava nada disso, mas o povo sim. Torrentes de fiéis começaram a migrar para Juazeiro do Norte. E Cicinho foi proibido de rezar missas, além de ser sumariamente suspenso. Em 1917, foi excomungado. A fúria da população religiosa nordestina fez com que o Vaticano voltasse atrás. No entanto, quatro anos depois, nosso personagem foi novamente suspenso e não pode atuar como padre católico até sua morte. Mas adivinhe: Padim Ciço não estava nem aí! Continuou exercendo sua fé e atraindo multidões até seu falecimento na data de 20 de junho de 1934.

O retorno desse filho de Crato para a Igreja pode se dar em estado de graça. Em 2001, um cardeal alemão encomendou estudos sobre o Padre Cícero para um eventual processo de canonização. O cardeal era Joseph Ratzinger, ele mesmo, atual Papa Bento XVI, o “homi”. O processo corre solto no Vaticano e muitos brasileiros aguardam com fervor a santificação de Padim Ciço. Vale lembrar que somos o maior país católico do mundo. E que, se Deus é brasileiro, como dizem, não parece querer conterrâneos por perto. Nossos 126 milhões de fiéis não têm nenhum santo brazuca para quem orar – acreditem, o Peru tem quatro santos.

Outro estrangeiro, um italiano, é um homem chave na canonização do Padim. Bispo de Crato, Fernando Panico (esqueça as piadinhas, esse é o sobrenome do cara), é quem coordena os estudos para o processo santo. Ele chegou a se reunir duas vezes com Bento XVI, quando este ainda não era Bento XVI, para tratar do assunto. Segundo o bispo, “assim como os milhões de devotos do Padre Cícero no Brasil, espero que o Papa, que já nos conhece e sabe muito bem da veracidade em Juazeiro do Norte, das romarias e da história de Padim Ciço, possa nos ajudar a responder a essa expectativa do povo que é ver reconhecida a santidade de Cícero Romão Batista”. Pessoalmente, torço para que feita a vontade de Panico. Até porque, para a maioria dos nordestinos, Padre Cícero já é santo há muito tempo.

VENDEM-SE PADRES

Na descida da estátua, o comércio pega fogo. Dezenas de produtos com o rostinho do Padre Cícero são negociados pelos devotos. Tem chaleira, caneca, chaveiro, caneta, santinho, camiseta, chapéu, pulseira e muito rosário. Consigo uma carona em um pau de arara lotado. Os romeiros cantam e trocam conversa fiada. Todos se encontram no mais profundo estado de felicidade e exaltação. Um êxtase coletivo sem anfetamina. Tudo vem do coração. Como é bom compartilhar e vivenciar esse momento mágico e universal. As pessoas estão integradas no tempo e no espaço.

A visita à estátua do Padrinho intensifica o ato transcendental de continuar vivendo com dignidade. Um jovem vendedor de sorvetes exalta sua fé exclamando, com fortíssimo sotaque, que não tem paciência de ver a programação da TV que barbariza e coloca o nordestino como um alienado sem futuro. “Esse mundo ilusório e fútil das novelas e noticiários televisivos só diminui nossa autoestima e coloca o nordestino na latrina cultural brasileira”, brada entre picolés, até que bota reparo em minha figura: “Gostaria que o senhor acompanhasse uma verdadeira explosão folclórica. Venha hoje, ao final da tarde, presenciar nosso grupo regional de reisado na porta da Igreja da Matriz”. Existe um frescor moderno e arcaico na prosa desse rapaz que some no burburinho da praça central. Sigo o meu caminho.

Na praça central, o intercâmbio de raças é uma Torre de Babel latino-americana. Vendedores de coxinha, postais, imagens de santos disputam espaço palmo a palmo, todos embalados com a sonoridade do forró de pé de serra e uma orquestra de peruanos tocando “Menina Veneno” em ritmo andino. No outro lado da praça, “Asa Branca” rasga o arvoredo e um enxame de romeiros sai bailando uma mistura de xote e xaxado. Chapéus de palha são erguidos ao céu que nos protege.

É fantástico o show da vida do Cariri. Fico arrepiado, siderado, abduzido na corrente energética do fígado de Juazeiro. A cachaça rola solta. O relógio marca 10h30 da manhã. Festa popular religiosa. Os peruanos hipnotizam os nordestinos com suas flautas e congestionam o trânsito de pedestres na praça. Perco-me no fluxo contínuo da multidão. Espremido no turbilhão, encontro um cantinho para comer uma espiga de milho.

Divido o espaço ínfimo com um senhor que, com um imenso sorriso, se apresenta: – Me chamo Benedito José Francisco, vim do Recife e estou com 79 anos. Completei 68 viagens com a graça de Deus, de meu Padim Ciço. Tive a graça alcançada depois de fazer uma cirurgia. Havia passado por dois hospitais e eles me condenaram dizendo que eu morreria dentro de duas semanas. Estou vivinho da silva. Fiz minha promessa de passar três vezes embaixo da cama de Padim Cícero que está no museu. Arre, égua, já se passaram dois anos e sou um homem feliz e cheio de vida.

MISS JUAZEIRO
Na descida da Rua Dom Pedro em direção à Igreja da Matriz, fui surpreendido com uma autêntica manifestação da Tieta do Agreste. Ela era branquinha, branquinha e cheia de dengo. Cheguei junto e fui conversando. Estava frente a frente com a Miss Juazeiro do Norte. La Tigresa do Cariri. Explodindo simpatia, deixou que nossas lentes captassem sua fragrância. Elizabeth Gouveia Soares, 23 anos de idade. Sua vida é estudar e esparramar sensualidade e beleza no Ceará. No final da conversa, afirmou que é devota “até a medula”.

Decidimos ir ao museu e antiga casa de Padre Cícero. O ruído e a algazarra frenética chamuscavam um sinal premonitório que martelava minha mente. Entrei em sintonia. Imagens e visões de minha mãe (Zezé), que me chamava na porta do museu. Lancei minha parabólica e fomos percorrendo os quartos e salas recheados de objetos, presentes, ex-votos, móveis, roupas e fotografias de Ciço. Os peregrinos, bronzeados pelo sol da caatinga, reverenciam com um quase fanatismo o relicário do guia espiritual.

Na sala principal, diante da porta de entrada, Angelita Maciel transborda informação junto com o padre Vileci Basílio, da diocese de Crato. Os dois fazem parte da Comissão Pastoral da Terra e trabalham com os romeiros, convivendo no seu dia a dia. Padre Vileci aquece a conversa e define com destreza o significado da romaria: “A promessa se confirma quando a graça é alcançada fazendo a peregrinação, indo ao lugar santo. Juazeiro é, por excelência, a terra abençoada nesta região. A pessoa só revela a promessa para o outro quando alcança a graça. Fazemos parte de uma grande corrente de religiosidade popular, ninguém está isolado. Meu amigo, somos grãos de um gigantesco rebanho na caminhada da fé”. Me arrepio com tais palavras.

Repentinamente, um silêncio invade a sala. Estava diante de um benzedor muito amado e querido do Nordeste, o versátil e impressionante José Alves Feitosa, 63 anos, nato de Nossa Senhora das Dores, no Sergipe. Puxou minha mão e fez uma profunda leitura do passado-presente-futuro da vida. Estava diante do mais autêntico oráculo da caatinga. Falou uma série de histórias sigilosas e desfez um mau-olhado. Uma coleção de coisas atravancadas emergiu como num passe de mágica e olhei a história da minha vida, do início ao fim. Sessão de terapia no epicentro do fuzuê. Mestre Feitosa contou que já fez muitas promessas ao Padim Ciço, “a primeira, Arthurzinho, ocorreu quando um bandido me assaltou e me apontou um revólver. Peguei a imagem do Padrinho e coloquei diante dele e exclamei: ‘Atire, atire, cabra safado!’. O desgraçado bateu o revólver seis vezes e não saiu uma bala. Minha profissão é de benzedor rezador por todo o Nordeste. Não cobro dinheiro de ninguém”. Nesse momento, uma cachoeira energética limpava meus chakras e espírito.

EU VI O MUNDO, ELE COMEÇAVA NO CARIRI

Acordei às quatro da manhã e me dirigi ao túmulo de Padre Cícero, na Capela do Socorro. Dia 2 de novembro, Finados, a multidão em êxtase acendia velas e rezava com fervor. Quando os primeiros fachos de luz surgiram, percebi os olhares ocultados pelas penumbras. Milhares de fiéis felizes levantando as mãos para o céu. Um arco-íris invadiu o cemitério. A imagem de minha mãe revelou-se diante das tumbas. Visões bíblicas.

Ao chegar a São Paulo, algo em mim havia mudado. Como o leitor mais avisado bem sabe, já viajei pelos 14 cantos do globo e, se tem um tema que me atrai em especial nas minhas peregrinações solitárias, é a religiosidade e a espiritualidade humana – em todas as formas, cores, raças. Sadhus na Índia distante, vudu no Haiti, bruxos no México, budistas no Tibet, franciscanos na Itália arcaica, daime na Amazônia peruana. Já conheci e experimentei de quase tudo e essa experiência tão próxima das minhas raízes, cultural e geograficamente falando, me pegou de surpresa. Por isso afirmo que, em se tratando de alma, só deixo o meu Cariri no último pau de arara.

Arthur Veríssimo

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