Até a ‘Boca da Vaca’: uma peregrinação pelos confins dos Himalaias

Estava na fronteira do impossível. Tanto procurei, cutuquei, que encontrei o fogo interno queimando e devorando minhas entranhas. Tudo era apenas um jogo ou um sonho? Meu corpo, com o aquecimento interno, estava à mercê do desconhecido como uma marionete nas mãos do além.

Havia exercitado exaustivamente por mais de uma hora os alongamentos básicos dos Suryas Namaskar (saudação ao sol) que mais parece o espreguiçar tradicional dos cães. Estes exercícios vigorosos (asanas) de yoga são fundamentais para o aquecimento do corpo e preparam o praticante para as séries de diversos métodos e estilos de yoga. Havia caminhado mais de 10 quilômetros e estava apenas a quatro mil metros de altitude. Tinha à minha frente o majestoso Shivlingam (o falo de Shiva) com seus 6.900 metros de altura observando e acompanhando o corajoso e descuidado peregrino que mandava ver nos exercícios respiratórios. 

Meu corpo fumegava. Minha animação de estar em um dos locais mais sagrados do planeta fez me sentir uma criatura abençoada. Meti bronca nos movimentos. Desarvorei.  O que não esperava era ter aberto as comportas dos vulcões secretos sem pedir autorização. Minha mente, corpo e espírito explodiam como campos de petróleo no Iraque. Que sufoco. O corpo havia se contraído e a respiração era ofegante e desequilibrada.

Estava sozinho em um lugar ermo em alguma parte dos Himalaias indo em direção à nascente do sagrado rio Ganges. Inexplicavelmente, como num passe de mágica, um Sadhu com longos cabelos e vestindo um manto espesso de retalhos apareceu e, silenciosamente aproximou-se.

Carregava um imponente tridente de Shiva. Dois reluzentes brincos de chifre de rinoceronte transpassavam a cartilagem de suas orelhas.  Seu olhar possuía a onipresença e serenidade do divino. Estava descalço.  Colocou suas calejadas e imensas mãos na minha cabeça e no coração. Um turbilhão de sentimentos e emoções desencadearam explosões contínuas no meu corpo. Cinematograficamente, assemelhava-se como uma das transformações do filme ‘Efeito Borboleta’. O misterioso peregrino dissipara o mal-estar latente fazendo alguns passes pelos meus chakras e com um largo sorriso me ofereceu uma estranhíssima flor seca. Olhei, admirei e escutei. Falou algumas palavras em hindi e, pelo que entendi, disse que me conhecia do Kumbh Mela de Allahabad em 2001. Rigidamente me deu um tranco e orientou-me a sentar em padmasana (lótus).

Obedeci como um noviço e fiquei por um bom tempo. Horas, dias, meses, séculos, outras vidas perfilaram diante da tela da minha vida. Um estado de bem-aventurança preencheu meu corpo e espírito.

Quando voltei à tona e abri os olhos, a divina criatura desaparecera. Quem era aquele homem? Seus brincos e o Trishula (tridente) revelavam dele ser um Gorakhnath. Os Naths pertencem a uma linhagem milenar de homens santos de tradições tântricas que reencarnam o princípio e aspectos do Deus Shiva.  Seria ele o próprio?  Este enigma me persegue exaustivamente desde aquele encontro. Esta experiência fragmentada ocorrera na mais exaustiva e sagrada peregrinação para os Hindus, a Residência Oficial dos Deuses.

Rumo a Morada dos Deuses

Uma dúvida indescritível incorporava nossas decisões. Estávamos na porta de entrada para os quatro locais (Char Dham) e metas de peregrinação (yatra) nos Himalaias: os santuários de Badrinath, Kedarnath, Yamunotri e Gangotri. Pesquisava, respirava, meditava sobre as informações e livros desta rota milenar e divina. Milhares de lendas e crenças emolduravam este cenário atemporal na minha vida e eram sentidos como um tsunami em movimento. Estava obcecado e repleto de duvidas e incertezas. Nossa base inicial era a sagrada cidade de Haridwar, no sopé dos Himalaias. Haridwar é o local onde o Rio Ganges desliza e entra para a planície. A cidade é plena de templos famosos e atrai milhares de peregrinos e devotos de todos os vilarejos da Índia. Diariamente, milhares de hindus fazem suas oferendas e pujas (missa) nos Gates de Har-ki-Pauri. Exatamente em um dos minúsculos templos à Deusa Ganga, fui instruído por um sacerdote a realizar minhas oferendas e preces para aproveitar o melhor desta aventura auspiciosa.

Há séculos devotos, fanáticos, filósofos, peregrinos, famílias, santos e renunciantes mergulham na profundidade de seus espíritos por entre vales, montanhas, confluências sagradas, cenários exuberantes e nascentes místicas na busca da purificação de seus pecados e karmas acumulados. A purificação é o objetivo primordial de toda a peregrinação, isto é, de todo o ato de devoção. Tradicionalmente pode ser alcançada por meio da oração, oferenda, do fogo e, sobretudo, na água. Estes quatro centros de peregrinação são as nascentes dos rios Yamuna (Yamunotri), Bhagiratri ou Ganges (Gangotri), Mandakani (Kedarnath) e Alaknanda (Badrinath). Em diversos textos milenares e nas escrituras sagradas Hindus estes locais estão descritos como a região do Kedarkhand, A Morada dos Deuses. Milhares de quilômetros nos separavam dos templos e das nascentes.

Cavalos Alados

Desde o início da nossa aventura em Delhi, contratamos em uma agência de viagens (Raidho Turismo) um Toyota 4×4 e um motorista. O sujeito era um simpático nepalês de nome Bharadhur.  Conhecia como um tigre todas as estradas, rios, vales, bifurcações e montanhas do Uttaranchal. Uma região de sonhos, crenças, lendas, mistérios e tradição da história e mitologia do Hinduísmo. Tradicionalmente, a rota que os peregrinos utilizam é de leste para oeste, começando em Yamunotri e finalizando em Badrinath.

Todos os anos, entre maio e meados de novembro, as rotas encontram-se abertas para a peregrinação, e no período do inverno, os templos são abandonados e os habitantes migram para as cidades mais baixas.  Devidamente bens instalados no veículo, eu e o cinegrafista Toni Nogueira entramos na freqüência do sobrenatural. Enlouquecidos de santidade, paramos em Rishikesh para comprar frutas, mantimentos, passar alguns e-mails e outras miudezas. Rishikesh é outro grande centro religioso e espiritual, ficou badalada no ocidente devido à ida dos Beatles para visitar Maharishi Mahesh Yogi. A cidade tem centenas de Ashrans e tradicionais escolas de yoga. Espalhadas pelas margens do Ganges, recebem alunos e praticantes de todo o planeta.

 

Estávamos no portal do “Reino dos Deuses”. O incansável cinegrafista, absorvido com toda a parafernália do equipamento de vídeo, delirava de alegria sapateando  junto com o mascote Badu. Tínhamos em mãos diversos mapas da região. O engenheiro de bordo M. Falcão (operador de áudio), depois de analisar detalhadamente as condições das estradas com outros experientes guias, decidiu com Baradhur (o motorista) nosso plano de viagem. O  primeiro destino seria Khedarnath e, na seqüência, Badrinath, Yamunotri e Gangotri. Nosso grand finale triunfal será em Gaumukh – a nascente do Ganges, a mais de 4.300 metros de altitude.

Segundo nossos cálculos, levaríamos 22 dias para visitar os quatro templos sagrados em uma corrida desenfreada. Tínhamos um excelente veículo para subir e descer os Himalaias de acordo com a realidade das montadoras de carros na Índia. Acordamos antes do nascer do sol e partimos com o carro transbordando de equipamentos. Na primeira etapa até Khedarnath, teremos de cumprir a distância de 209 km ao vilarejo de Gaurikund. Mais um trekking de difícil acesso de 14 quilômetros. Engana-se à primeira vista quem pensa que esta distância é moleza. Segundo nosso motorista, iremos levar mais de 9 horas até a base do vilarejo, se não ocorrer nenhum imprevisto.

Admirávamos a beleza dos vales e a confluência de rios. Na pequena Devprayag, distante 70 km de Rishiskesh, o encontro do Ganges com o Mandakani e Alakananda deixou-nos estarrecidos. À medida que subíamos, florestas de cedros e pinheiros espalhavam-se pelas encostas das montanhas. Um perfume de diversas nuances embriagava nossos espíritos do buquê que exalava das flores nativas. Estávamos em êxtase. No inicio, parávamos de 10 em 10 minutos para filmar e fotografar. Nosso motorista resolveu colocar ordem na excursão e, solenemente, instruiu para só pararmos em cenas e situações especiais. Não tinha jeito, a cada virada de curva, peregrinos pela estrada, paisagens arrebatadoras, pedíamos sutilmente para dar uma paradinha. Estávamos sedentos e a adrenalina não baixava. Depois de algumas horas, encontramos nosso equilíbrio. Isso aconteceu na maravilhosa confluência de Rudraprayag (encontro do Mandakani com Alaknanda). 

Resolvemos filmar a junção. Um enfumaçado naga-baba cheio de histórias apareceu na encruzilhada e botou fogo num imenso chillon recheado de charas e tabaco. O tempo passou. Filtrou. Flipou. Quando chegamos em Gaurikund, já havia anoitecido. Havíamos saído de 240 metros de altitude e estávamos a 2.000 metros do nível do mar.

Uma multidão de guias nos cercou. Que confusão! Seguindo minha intuição, adotei um simpático jovem que nos levou para um hotel simples à beira do rio Mandakini. Acordamos com o guia estraçalhando de pancadas a porta do quarto. Estava com dois personagens que nos levariam até o templo sagrado. O frio rasgava a epiderme. Uma enorme cocheira repleta de jumentos e jericós era a base da nossa caminhada de 15 km até Kedarnath. Os guias insistiam dizendo que os pequenos burricos eram cavalos. Resolvemos não estressar. “Ok. Ok, amigos, são cavalos alados!” Combinamos os preços e partimos com nosso exército de Brancaleone para a residência e templo de SHIVA.

Pensamos que seria um algodão doce. Pura ilusão. Centenas de devotos e peregrinos caminhavam a pedregosa e sinuosa trilha. Alguns inválidos e idosos eram levados em liteiras e cestos enormes. Percorríamos apenas um pedaço da trilha que milhões de ascetas e pessoas comuns transitam há milhares de anos. Nosso guia e dono dos jumentinhos explicava que todos as estradas que levam aos templos sagrados eram feitas há menos de 100 anos sem carros, caminhões ou qualquer veículo. Toda a rota era transcorrida a pé ou no lombo dos burros, isto é, milhares de quilômetros no total de cabo a rabo dos quatro centros de peregrinação pelos Himalaias.

Respirei e, decidido, subi o caminho de fé como um autêntico hindu. Todo o peregrino tem o apetite dilacerante da santidade, não está nem aí com a opinião dos outros, ele quer se distinguir dos outros. Caminha para a fronteira do sobrenatural. O que aprendeu com as tradições é que pode atingir uma força oculta à qual estudou e lhe falaram e na qual acredita. A parada é a seguinte: o homem de fé deseja acima de tudo alcançar a santidade pelo mérito de suas façanhas.

Depois de algumas horas, vislumbrei o templo de Kedarnath.  O cenário é deslumbrante. O templo está erguido sobre uma plataforma a 3.581 metros do nível do mar e tem ao fundo uma cordilheira de montanhas cobertas de neve eterna. Uma multidão de andarilhos e saddhus rezam, conversam e trocam conversa fiada no pátio externo. Uma imensa imagem do celestial touro Nandi (manifestação de Shiva) guarda a entrada principal do templo. Segundo consta no sagrado épico Mahabharatha, Lord Shiva decidiu se refugiar em Kedarnath depois de uma exaustiva batalha contra os demônios. No interior do local, encontra-se um dos 12 “Jyotirlingas” em formato piramidal. Em todos os templos é expressamente proibido fotografar e filmar. Toni (proibido proibir), possuído pelo desejo de registrar o impossível, entrou junto com a turba de fiéis e, no frenesi, filmou o transe dos devotos diante do lingam de Shiva.

O cansaço impregnava nossos corpos. Meditamos, comemos e aproveitamos a luz do dia para descermos até Gaurikund, a base do início desta jornada. Estropiados, tomamos um banho quente de balde. Adormeci como uma criança.

No útero da Deusa Lakshmi

Na manhã seguinte saímos às 6 horas para a segunda etapa da nossa rota de peregrinação: Badrinath. Tínhamos duas opções: voltar até Rudraprayag ou pegar um atalho em Kund e ir cortando pelos vales e montanhas em uma estrada de cabulosíssima. Optamos pelo mais difícil, a segunda opção. A distância seria de 230 km. O panorama da estrada era estonteante. A partir da junção de Kund até Chamoli, percorremos 90 km onde claramente percebi a diferença entre o transitório e o permanente. Vivenciava e enfrentava a vida em toda a sua deslumbrante imprevisibilidade e ameaçadora instabilidade. Nunca havia percorrido uma estrada tão recheada de obstáculos e com cenários paradisíacos. Neste trem fantasma do além, nenhum carro cruzou com o nosso veículo. Depois soubemos que é raríssimo alguém rasgar por este atalho para ir a Badrinath.

Quando pegamos a rota principal em Chamoli, percebemos imediatamente o tráfico incessante de caminhões e ônibus. Fomos subindo as montanhas, margeando o sinuoso e volumoso Alaknanda. Paramos em Hanuman Chatti para abastecer e comprar algumas frutas. Nossa chegada em Badrinath foi um colírio para o espírito. Rapidamente nos hospedamos no hotel Garhwal Mandal, o mais popular entre os peregrinos.

Pela primeira vez conhecemos um ocidental por esta região. Era um fotógrafo polaco que estava em Badrinath pela terceira vez. Um homem de pouquíssimas palavras. Estava se preparando para fazer uma caminhada íngreme até um platô de 5 mil metros, onde dois retirantes vivem sozinhos em suas respectivas cavernas. Segundo o polaco, ao menos duas dezenas de homens santos e yogues estão isolados em completa vigília na imensidão dos arredores de Badrinhath. Estava na fronteira do indizível. Distantes poucos quilômetros da China (Tibete). Como simples mortais, fomos conhecer o vilarejo, escutá-lo, senti-lo, respirá-lo. Comemos uma clássica refeição, Dal (lentilha), arroz e alguns legumes. Compramos alguns souvenirs e ficamos perplexos diante do templo de Badrinath. Era a mais linda moldura viva que meus olhos haviam captado nesta viagem.

Centenas de devotos, sacerdotes e gurus caminhavam como formiguinhas em direção ao sagrado templo, tendo ao fundo as explêndidas montanhas de Nara e Narayana. Passamos frio na madrugada, os termômetros chegaram a 7 abaixo de zero. Despertos, nos dirigimos ao templo de Badrinath (3.122m.de altitude) – um lugar sagrado para todos os adoradores do Deus Vishnu. A fachada do templo é uma aquarela de tonalidades verdes, azuis, vermelhas, amarelas e, logo abaixo, uma surpresa dantesca. Fontes de água quente abençoam o cansaço dos peregrinos e limpam suas entranhas e espíritos da jornada penosa. Conhecidos como “tapkunds”, as termas naturais são um caso à parte. Uma experiência de devoção coletiva onde crianças e adultos banham-se na mais pura celebração. Existem muitas interpretações do significado sagrado da fonte principal. A que mais se aproxima da sensação que senti ao mergulhar junto com os devotos nada mais é que o útero da deusa Lakshmi, a consorte de Vishnu.

Ao sair do tanque, um sacerdote ofereceu-nos um darshan (missa e bençãos) e fulminou com a seguinte frase. “Existem muitos lugares sagrados de peregrinação nos céus, na terra e outras parte do planeta, mas nada se compara a Badrinath. É obrigatório vir aqui ao menos um vez na vida”.

Abençoados, de banho tomado na placenta divina e repletos de méritos e karma positivo, organizamos nossa parafernália. Iríamos retornar até Rishikesh, distante 298 km.

O tiozinho cyber de Calcutá

O que presenciamos em nossa volta pela ‘rodovia’ foi uma sucessão de quedas de barreiras, avalanches e cenários deslumbrantes. Exaustos, depois de mais de 15 horas de muita poeira e desmoronamentos, Rishikesh surgiu diante de nossos sentidos como Shangri-La. No hotel The Great Ganga, a atmosfera transcendental da cidade milenar incorporou nossos espíritos. Banho, comida, telefonemas, e-mails, incensos e camas com lençóis impecavelmente limpos acudiram nossos corpos dilacerados. “Om Namah Shivaya”.

Nosso terceiro destino seria o sagrado templo de Yamunotri.  Acordamos antes do amanhecer e partimos rumo à capital do estado de Uttaranchal, a tipicamente inglesa Dehradun.  Segundo os mapas e o nosso motorista, a estrada é um caleidoscópio de cenários paradisíacos. Na nossa nova rota percorreríamos 250 km cravados.  Foi por esta região que o oficial alemão Heinrich Harrer escapou da prisão de Dehradun na segunda guerra mundial e atravessou vales e montanhas até chegar ao Tibete, onde viveu e conviveu com o pequeno S.S. Dalai Lama. Esta fascinante história transformou-se no best-seller ‘Sete anos no Tibet’.

Lá estávamos nós, subindo os Himalaias novamente. A altitude de Rishikesh é de 340 m do nível do mar, Dehradun 640 m. Depois de algumas horas, passamos por Barkot a 1280 m. Ao final da tarde, chegamos ao último vilarejo com acomodações decentes: Hanuman Chatti (2400m). Faltavam ainda 12 km de dificílimo acesso de veículo até a base para o trekking mais árduo da peregrinação: a penitência de 6 km da mais inclinada pirambeira na Morada dos Deuses, Yamunotri. O acesso para o templo é uma escalada por uma trilha íngreme e sobreposta de centenas de obstáculos. Devotos de todas as castas, seitas e estados indianos se solidarizam com mensagens positivas e mantras de alívio para a rigorosa e extenuante subida.

A estradinha trágica vai serpenteando a montanha fazendo zigue-zagues convulsivos. Mulas experientes travavam no meio do caminho. O inacreditável eram os carregadores levando nos ombros em palanquins e liteiras peregrinos doentes, gordos, senis e preguiçosos. Algo inexplicável contagiava minha mente e coração. Meu sentimento era que já tivesse experimentado e vivido a subida daquela montanha em outras reencarnações. Conhecia aquela trilha, há tempos esquecida, como um parente morto ou um sonho antigo.  Aquelas montanhas já haviam testemunhado minha presença em outras vidas. Lampejos repentinos de lembranças arquetípicas espocavam da memória do meu código genético.

O dia estava completamente desvairado. Começou com a manhã fria e com ventos fortes, nuvens espessas, sóis brilhantes repentinos, pássaros sobrevoando nossas cabeças e a chuva castigando o caminho sagrado. Ofegante, parei para recuperar minha respiração e curtir o panorama do rio Yamuna deslizando pela garganta. Descendo a trilha, um senhor saltitante como um elfo percebeu meu desequilíbrio e sugeriu todo supimpa uma técnica de meditação.

– “Pode me chamar de Gopal, sou de Calcutá”, exclamou a lépida criatura. “Experimente caminhar olhando a trilha e seus pés, não vire para os lados, simplesmente entre em transe à medida que o chão vai passando rapidamente. O segredo desse tipo de escalada é como o rio: não pense. Dance de acordo com o ritmo. É a coisa mais fácil do mundo. Não se aflija. É bem melhor do que andar no terreno plano, que é monótono. Deixe de frescuras e vá em frente”,  finalizou o tiozinho-cyber de Calcutá. Decidido, completei a subida como um ninja. No alto, a visão de Yamunotri apavora nosso bom senso. Parecia que estávamos em um cenário do filme ‘Senhor dos Anéis’.

O templo está suspenso entre as montanhas e a densa floresta. Centenas de peregrinos compram em pequenos quiosques guirlandas, oferendas de coco, perfumes, incensos e flores, para a filha do Deus Sol (Surya) o sagrado rio Yamuna. Originalmente, sua nascente está localizada há mais de 4.500 m de altitude na Geleira de Kalind Parvat. Na boca de entrada do templo, uma cena alucinante nos pegou desprevenidos. Como em Badrinath, uma multidão banhava-se em divinos tanques de água escaldante. Uma gigantesca rocha quente é o primeiro local das preces e oferendas antes de entrar no templo. No interior do santuário, uma imagem de mármore negra estranhíssima reproduz a sacralidade do rio Yamuna. 

Fui o centro das atenções devido às minhas tatuagens. Os felizes e desbundados indianos queriam tirar uma casquinha e passar a mão, principalmente na tattoo de Shiva que tenho no braço esquerdo. Foi uma festança. 

O calor humano junto com a água quente são pré-requisitos insubstituíveis para a transformação. Estávamos purificados e fortalecidos, prontos para ascender às estrelas. Relaxados, descemos como crianças até a base em Hanumanchhatti.

A Boca da Vaca

Passamos mais uma noite no vilarejo e, na manhã seguinte, partiríamos para nossa última meta: Gangotri. A distância de acordo com os mapas: 235 quilômetros. Despencamos montanha abaixo até a encruzilhada de Barkot onde cruzamos um vale precipício (Dharasu Bend) a 850 metros de altitude. Almoçamos em Uttarkashi e retornamos ao zigue-zague da subida até o destino final. Cidades estranhas com nomes esquisitos perfilavam nosso caminho: Gangnani, Sukhi Top, Harsil, Lanka. Pela estrada, bosques com ciprestes, nogueiras, carvalhos, e principalmente pinheiros povoam as margens do Rio Ganges. Uns turbilhões de peregrinos e ocidentais fervilhavam o confuso estacionamento e ponto final da estrada – Gangotri. Adotamos dois guias, e eles nos encaminharam para o tradicional Garhwal Mandal Vikas Hotel. Acertamos nossa permanência de alguns dias por lá, pois teríamos pela frente um treeking-peregrinação de mais de 40 km (ida e volta) até a nascente do adorado Ganges. Ao lado da nossa casa (hotel), logo abaixo do templo, está Gauri Kund, onde o rio desce de uma altura considerável e continua numa sucessão de pequenas cascatas até um imenso precipício. O local é um suporte e devaneio para o espírito.

Os conjuntos de pedras, rochas em comunhão com as águas são autênticas obras de arte da natureza que foram esculpidas e lapidadas pelos deuses. O templo principal de Gangotri foi construído por Amar Singh Thapa, um general nepalês no inicio de 1800 e renovado pelo Marajá de Jaipur. Segundo as lendas e escrituras sagradas, onde construíram o santuário sempre foi local de romaria há milhares de anos. Ficamos despertos toda a madrugada. Saboreamos a majestosa lua cheia e definimos nossa estratégia e equipamentos para a ultima investida: a nascente do Ganges mais conhecida como Gaumuk – a Boca da Vaca.

Contagiados pelo irresistível magnetismo espiritual, partimos logo cedo. Em nossa romaria, acompanhamos alguns devotos que, felizes, comentavam que a peregrinação até Gaumuk e o mergulhar em suas sagradas águas é lavar os pecados de muitas vidas e purificar a alma. A grande maioria carregava garrafas, jarras, potes e recipientes de metal para encher de água na nascente. A trilha vai costurando pelas margens do Ganges. O sol e o calor a mais 4 mil metros de altitude castiga nossos corpos e a drástica redução do  oxigênio dificulta a caminhada. Muitos grupos de alpinistas utilizam a estreita rota para subir até as eternas Geleiras de Meru e Gangotri. Este imenso platô é chamado de Tapovam, base para escaladas perigosas aos picos Shank, Shivlingan, Mandir e outros.

Exaustos, depois de caminharmos mais de 10 quilômetros, nos instalamos no acampamento de Bhojbasa, onde centenas de peregrinos fazem seus últimos preparativos para a última pernada de 6km até o banho dos deuses. Observo nos semblantes dos penitentes a presença de Deus. Milhares de divindades se interagem à nossa volta como um imenso caleidoscópio. Vishnu, Hanuman, Durga, Kali, Shiva, Parvati caminham pacientemente ao lado dos peregrinos. O panteão hinduísta exerce um fascínio irresistível a qualquer criatura. As pessoas escolhem neste quebra-cabeça um pequeno número de deuses, traçam uma meta imaginária conectando essas forças, e assim criam seus respectivos caminhos.

Apesar da falta de ar e dos obstáculos sucessivos na trilha, as vibrações espirituais estão presentes em toda a magnitude do ambiente.  Quando visualizamos a enorme caverna onde brota o Rio Ganges, a paz e serenidade invadem nossas almas. Diante dos nossos olhos, imensos blocos de gelo são lançados da sagrada Boca da Vaca. Impávidos fiéis fazem suas orações e oferendas mergulhando nas águas geladas. Estava concluída nossa peregrinação.  A percepção do tempo congelou-se: não há pressa, ansiedade e nenhuma expectativa. Tudo era espontâneo e pleno. Mergulhamos nas águas sagradas. Ao sairmos, um silêncio colossal invadiu nossos espíritos.

Conheço muitos lugares, culturas e religiões pelo mundo. O que já vivenciei e experimentei nada se compara com esta peregrinação que transcende nossas mentes e almas. Os peregrinos estão aqui por um propósito comum: purificar e renascer.  Não tenho vocação para santo porque sou um homem perseguido por muitos pecados. Alguns sei que cometi. Outros, já não me lembro mais. E outros tantos sei que ainda vou cometer. Saio desta jornada com uma certeza: não existem palavras, poemas ou poesias. Quadros, filmes ou imagens. Sons, músicas ou ruídos. Sabores, fragrâncias  ou perfumes. Nada. Nada poderá expressar ou traduzir o que senti e vivenciei nesses dias surreais e atemporais na MORADA DOS DEUSES.

ARTHUR VERÍSSIMO.

 

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