Maconha e especiarias na China: uma visita ao fenômeno mundial da medicina tradicional

Com 94 anos, Dr. Ho Shi Xiu tem mais de 500 artigos escritos em 40 idiomas. Muitos sobre o uso medicinal da erva

Caminhava ao final da tarde na praça do Leal Senado, no coração lusitano da cidade de Macau. Serenos e imperturbáveis, os chineses jogavam o cerebral mahjong, um complicado jogo local.

Sentados em pequenas mesas, os adivinhos faziam prognósticos para os curiosos. A técnica milenar capta dos traços fisionômicos e o formato da cabeça do cliente uma leitura do futuro e histórias do passado. Finalizavam observando as linhas da palma da mão. O grande problema para fazer a consulta com os adivinhos é que todos só falavam cantonês e mandarim.

Como num passe de mágica surgiu um chinês para o serviço de interprete. Aproveitei e fiz um consulta com um senhor que parecia com o mestre Yoda, do filme Guerra nas Estrelas. Uma sucessão de histórias e passagens verídicas do meu passado imergiram e ao final seu oráculo revelou que eu estava na eminência de uma viagem para o sul da China. Fiquei perplexo diante da sagacidade da enigmática criatura, descendente do sábio Confúcio. Realmente pretendia peregrinar pela província de Yunnan e conhecer as cidades de Kuming, Dali e a majestosa Lijiang.

Dois motivos fundamentais fervilhavam minha mente e coração. O primeiro: Tinha em mãos a cópia do xerox de uma matéria publicada no ‘New York Times’ em 16 de março 1986 do grande viajante e escritor Bruce Chatwin. O título “In China: Rock’s Kingdom”. Era um texto delicioso da visita que Chatwin fizera ao eminente Dr Ho, no vilarejo de Baisha. O segundo: Em uma palestra enfumaçada do “Guru of Ganja” Ed Rosenthal, etno-botânico e colunista da revista americana ‘High Times’, na Cannabis Cup em Amsterdã, ele comentou que “a cannabis sativa se originou na região de Yunnan. entre Dali e Lijiang, e existem registros que a maconha já era usada sob forma medicamentosa na China desde o ano 7000a.C.”

No dia seguinte, parti de Macau em um vôo direto para Kunming (conhecida como Cidade da Primavera), capital da província de Yunnan. Uma tempestade devastava a cidade no momento do pouso. Chovia ininterruptamente há mais de 10 dias. O sul da China encontrava-se no período das monções, como grande parte da Ásia. Yunnan é por excelência um dos lugares mais exóticos do mundo. Suas fronteiras debruçam com o Laos, Vietnã, Tibete e Myamar (Birmânia). Com dezenas de minorias e tribos, um multifacetado caldeirão étnico se espalha. É um paraíso da diversidade: Daí, Hani, Jingpo, Bulang, Pumi, Yao, Zhuang, Dulong, Naxi, Wa, Achang Belong, Lisu misturados a mongóis e tibetanos é o universo que encontramos em qualquer estação de ônibus ou mercado popular. O melhor método de identificar o grupo é pelas roupas e adereços.

Sob um temporal, parti para Dali em um ônibus leito. Dentro do veículo, percebi que o “leito” era literalmente beliches com cama. Quem já viajou pelo intestino grosso da China de ônibus ou trem, sabe do que estou dizendo. Durante a viagem, dividi a cama com um soldado chinês ensebado. Tudo muito estranho.

A cidade de Dali tornou-se a alternativa chinesa de Kahtmandu (Nepal). Com mais de 1,9 mil metros de altitude, ela fica situada as margens do lago Erhai e aos pés da cordilheira de Cangshan. Você pode percorrer a velha cidade em suas ruas de paralelepípedos, casas de madeira e pedra, entre os portões sul e norte em apenas 50 minutos. O visual do município com as montanhas ao fundo é impressionante. Três construções originalmente erguidas no século IX despontam altivas no cenário diante de majestosas três pagodas. O Qianxu, a maior delas, tem dezesseis estruturas superpostas que atingem a altura de setenta metros. As pagodas que o cercam, têm cada uma 42 metros de altura.

Ao longo de três mil anos, o entorno do lago Erhai foi território dos guerreiros Bai. Dali era a capital do reino. A cidade é repleta de botecos, restaurantes, guest-houses, baladas, boates, malucos, antropólogos, turistas e bicho grilos de todas as partes do planeta. Visitando os alfaiates e lojas de roupas, percebi que 80% do material das indumentárias e tecidos eram de Hemp.

Percorri a distância entre Dali e Lijiang em seis horas cravadas. Na fronteira com o Tibet e, embora tenha sido devastado por um terremoto em fevereiro de 1996, a cidade antiga, com ruas labirínticas e pontes levadiças, encontra-se preservada. Coexistem duas cidades. A nova que, como em qualquer outro canto da china capitalista, se desenvolveu e é recheada de prédios horrorosos e shopping centers. E a cidade velha, repleta de minorias étnicas.

 etnia predominante são os Naxi. Este povo tem sua origem no Tibet e são adeptos da religião dongba, um conjunto de crenças animistas e muita magia. A grande maioria dos homens fumam em longos cachimbos uma mistura de ervas, raízes, maconha e outras especiarias. As mulheres Naxi são uma visão psicodélica pela cidadela medieval. Usam trajes tradicionais e capas em forma de T, bordadas com círculos que simbolizam o sol, a lua e as estrelas. Meu foco, finalmente era fazer uma visita a casa, consultório e museu do “fenômeno mundial da medicina tradicional”, o Dr. Ho Shi Xiu.

Aluguei uma bicicleta na estação central de Lijiang. Minha aventura iniciava-se com as benções de uma imensa estátua do camarada Mao Dze Dong. O Dr. Ho vive no vilarejo de Baisha há 12 quilômetros de distância. A cidade tem ao fundo o visual eterno da montanha de neve do Dragão de Jade. Foi fácil detectar a casa do ilustre Dr Ho. A fachada é uma gigantesca instalação de recortes de jornais, relíquias, fotos, cartões de visita, revistas, artigos da imprensa mundial dissertando sobre Master Ho. Matérias do El Pais, La Stampa, L’Figaro, Le Monde, Washington Post, Sunday Times, San Francisco Chronicle, National Geografic, N. Y. Times, Actuel, Bizarre, Corriere de la Serra etc… Todas devidamente plastificadas.

Escuto um caloroso chamado: “Welcome to my house. I’am Dr Shi-Xiu Ho” exclamou a doce criatura saltando com muita desenvoltura da janela para a rua. Estava com sorte. Nenhum curioso, antropólogo, médico, freak-brother, turista ou jornalista estava no santuário. Normalmente ele recebe centenas de visitas semanais de viajantes e expedicionários de todos os cantos do mundo. Sua simpatia e magnetismo é cativante. O filho mais velho surge carregando dois fardos. Parece um personagem das aventuras de Tin-tin. Larga os pacotes com ervas no chão e desarvora a falar que a fama do pai se expandiu pelo planeta devido há mais de 500 artigos escritos em 40 idiomas. O pai com um ar de modéstia misturado há muita sabedoria pede ao filho para preparar um chá.

Nossa conversa é uma autêntica aula de filosofia e medicina. Sorvo um infusão deliciosa e aproveito para fazer uma consulta com Dr. Ho. Seu diagnóstico é preciso e cirúrgico. Observa meus olhos, língua e palma de mão. Ao final, comprime seus dedos no meu pulso e faz algumas anotações. Sua relação com o universo das plantas é íntima e empírica. Conhece mais de três mil tipos de ervas, arbustos, plantas, arvores pelas imediações da montanha sagrada. Vejo no depósito das plantas, no meio de dezenas de pacotes e sacolas, um imenso fardo com maconha. Sou agraciado por três pacotes de ervas medicinais para equilibrar meu organismo. Sua análise é que estou muito bem de saúde, mas devido aos condimentos e outras iguarias chinesas seria melhor tomar aquela poção mágica durante dois meses.

Sua energia transborda pelo ambiente. Por incrível que pareça, nenhum ocidental apareceu naquele dia. Pude desfrutar da presença iluminada de Dr Ho e sai de sua casa flutuando em minha bicicleta alugada.

Dr Ho, em 2003, foi entrevistado por Michael Palin e John Cleese, do grupo Monty Python, para a BBC. O sábio medicine man está com 94 anos e continua recebendo visitas em seu santuário, lá no alto da montanha. Vai lá !!!!

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